Por David Cordeiro da Silva (Filosofo e teólogo)
Dia 21 de abril de 2025, a Igreja e o mundo se despediram de Papa Francisco, o pontífice que, ao longo de seu papado, imprimiu uma marca indelével na vida e missão da Igreja Católica. Francisco não foi apenas o Papa do diálogo e das pontes, mas o pastor que, com humildade, coragem e um coração profundamente encharcado de misericórdia, ensinou que a alegria do Evangelho é uma chama viva de esperança que não se apaga, mesmo nas noites mais escuras.
O argentino Jorge Mario Bergoglio, o ‘Papa do fim do mundo’, como ele mesmo se apresentou em sua primeira aparição pública como bispo de Roma, marcou sua trajetória não apenas pelo carisma cativante, mas também pela força de uma fé que ultrapassa muros e alcança corações, aproximando católicos afastados, pessoas de outras crenças e até mesmo os que não professam fé alguma.
Sua vida, que começou em Buenos Aires, em uma família simples de imigrantes italianos, moldou sua sensibilidade social, seu olhar de compaixão e seu compromisso com a justiça. A influência da avó Rosa, mulher firme, leiga consciente e corajosa[1], somada à formação como jesuíta, à experiência pastoral com os pobres e ao contato com os ventos renovadores do Concílio Vaticano II, do Documento de Medellín e da Teologia do Povo, forjaram a essência do Papa que o mundo conheceu: um pastor que soube unir doutrina, proximidade e ação concreta.
Alegria que contagiou e se multiplicou. Desde os primeiros gestos de seu pontificado, Francisco surpreendeu pelo sorriso simples e pela capacidade de, com palavras e atitudes, despertar uma Igreja para a urgência do amor e da evangelização. Sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium[2] é um verdadeiro hino à alegria cristã, uma convocação para que a Igreja redescobrisse o entusiasmo do primeiro amor e o transformasse em ação missionária. “O verdadeiro missionário, que jamais deixa de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele” (EG, n. 266). Essa alegria, para Francisco, sempre foi mais do que um sentimento passageiro; foi uma postura, um modo de viver e anunciar o Evangelho mesmo diante das dores do mundo.
Misericórdia que abraçou e transformou. A misericórdia foi o centro gravitacional de seu pontificado, vivido não apenas como doutrina, mas como estilo de vida, desde o Jubileu Extraordinário da Misericórdia[3] até no critério pastoral, como rosto visível de Deus no mundo. Francisco insistia que a Igreja só pode ser fiel ao seu Senhor se souber tocar as feridas da humanidade, como o próprio Cristo tocou.
Na Evangelii Gaudium, Francisco fez um dos apelos mais profundos de seu pontificado:
“[…] Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo […]. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’.” (EG, n. 49)
Essas palavras resumem seu chamado constante a uma Igreja viva, encarnada e corajosa.
Esperança que não decepciona. Para Francisco, foi o motor de cada gesto e palavra. Em tempos de crises ambientais, sociais e espirituais, ele não se cansou de afirmar: “É possível recomeçar, é possível transformar.” Na Laudato Si’[4], ele ampliou o olhar da Igreja para o cuidado da Casa Comum e, na Fratelli Tutti[5], renovou o apelo pela fraternidade universal, desafiando o mundo a superar a indiferença e edificar pontes. Sua esperança era profundamente enraizada no Evangelho e se expressava em convicções práticas: pela justiça social, pela inclusão dos pobres, pela superação das desigualdades e pela construção de um mundo de paz.
Uma liderança moldada para o tempo presente. Francisco nunca dissociou fé de compromisso social. Sua trajetória, como já descrita, foi guiada pela Doutrina Social da Igreja, o Concílio Vaticano II e pela Teologia do Povo, e inspirou iniciativas concretas como o Movimento Laudato Si’[6], o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral[7] e Economy of Francesco[8]. Sua leitura da realidade social partia do núcleo do Evangelho: a opção preferencial pelos pobres, a dignidade inalienável de cada pessoa, o valor da solidariedade e a urgência de um diálogo sincero com as culturas e as ciências. Francisco, com sua coragem profética, não se cansou de desafiar as estruturas a se abrirem à ação do Espírito, encarnando a caridade e rompendo com a segurança de normas que, muitas vezes, afastam a Igreja do mundo que ela é chamada a ir ao encontro.
Um legado que permanece vivo. Ao fazer sua Páscoa definitiva, Francisco deixou à Igreja e ao mundo um testamento espiritual moldado na alegria, na misericórdia e na esperança. O Papa que insistia em sonhar com uma Igreja de portas abertas parte, mas suas palavras e gestos continuarão a ecoar em cada comunidade que decidir sair de si mesma para se fazer próxima dos últimos, dos esquecidos, dos feridos.
Diante de uma vida tão plena e de um testemunho tão luminoso, cabe agora a cada um de nós, especialmente aos jovens, manter acesa essa chama que Francisco soube espalhar pelo mundo. Em tempos de muros, ele construiu pontes. Em tempos de indiferença, ele escolheu a misericórdia. Em tempos de cansaço e desesperança, ele reafirmou a alegria do Evangelho e a certeza de que é possível recomeçar. O Papa que sonhou com uma Igreja em saída, pobre para os pobres, inquieta diante da dor alheia e incansável em sua missão, agora confia esse sonho às mãos e ao coração de uma nova geração. Uma geração que não se acomode, que não se conforme, que ouse amar e servir, que tenha coragem de sujar os pés nas estradas do mundo, levando consolo, justiça e paz para todos, todos, todos!
Que cada jovem, olhando para o legado de Francisco, se sinta provocado a viver com a mesma alegria que contagiava, com a mesma misericórdia que abraçava e com a mesma esperança que insistia em recomeçar. Que suas palavras e gestos não fiquem apenas na memória da história, mas se tornem vida nas atitudes concretas de quem escolhe, todos os dias, transformar o mundo a partir do Evangelho. Seu pontificado foi uma verdadeira sementeira de vida, e seu legado como um Papa que priorizou a inclusão, a justiça e o cuidado com a criação perdurará como uma luz que guiará as futuras gerações e continuará a inspirar a Igreja. Francisco agora se une ao Ressuscitado, mas o seu convite permanece: “Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!” (EG, n. 49).
REFERÊNCIAS
DICASTÉRIO PARA A COMUNICAÇÃO. Biografia do Santo Padre Francisco (online), s.d..
Disponível em < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/biography/documents/papa-francesco-biografia-bergoglio.html > Acesso em: 21 de abril de 2025.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (online). 2013. Disponível
em:<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papafrancesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>. Acesso em: 21 de abril de 2025.
______. Carta Encíclica Laudato Si’ (online). 2015. Disponível
em:<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si.html>. Acesso em: 21 de abril de 2025
______. Carta Encíclica Fratelli Tutti (online). 2020. Disponível
em:<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.htmll>. Acesso em: 21 de abril de 2025.
______. Carta apostólica em forma de motu próprio. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20160817_humanam-progressionem.html. Acesso em: 21 de abril de 2025.
SILVA, Mariane de Almeida. Colegialidade: experiências de Jorge Mario Bergoglio e sua influência no pontificado de Francisco (online). São Paulo: PUC-SP, 2018. Disponível em: . Acesso em: 21 de abril de 2025. (Tese de Mestrado em Teologia – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
THE ECONOMY OF FRANCESCO. Jovens ‘Pacto pela Economia’ com o Papa Francisco. 2022. Disponível em:< https://francescoeconomy.org/pope-francis-pact-for-the-economy-with-young-people/>. 21 de abril de 2025.
[1] Cf. SILVA, Mariane de Almeida. Colegialidade: experiências de Jorge Mario Bergoglio e sua influência no
pontificado de Francisco (online). 2018. p. 69. Disponível em <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/21052>.
Acesso em: 21 de abril de 2025.
[2] Cf. FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelli Gaudium. 2013.
[3] Cf. FRANCISCO. Misericordiae Vultus; bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia. Disponível em <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/bulls/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html >. Acesso em: 21 de abril de 2025.
[4] FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’. 2015.
[5] FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti. 2020.
[6] Cf. MOVIMENTO LAUDATO SI. Quem Somos (online). s.d. Disponível em:
<https://laudatosimovement.org/pt/quem-somos-nos>. Acesso em: 21 de abril de 2025.
[7] FRANCISCO. Carta apostólica em forma de motu próprio. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20160817_humanam-progressionem.html. Acesso em: 21 de abril de 2025.
[8] FRANCISCO. Carta do Papa Francisco para o evento “Economy of Francesco”. 2019. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190501_giovani-imprenditori.html>. Acesso em 21 de abril de 2025.